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Lili a Menina Curiosa - Um conto autobiográfico

Atualizado: 15 de ago. de 2023


Dizem que as crianças quando nascem esquecem o que vem fazer na vida, escutei a minha mãe dizendo isto para outras mulheres, numa tarde de outono enquanto escutava o barulho das colheradas de massa cair na banha quente. O aroma da casa era delicioso, aquele cheirinho de bolinho frito com canela.

Lembro das saias arrastando no chão e também seus tamancos barulhentos.

Eu não entendia muito essa conversa e pensava: “o que as crianças podiam esquecer”, se não sabiam nada da vida!

Eu nunca perguntei nada para a minha mãe sobre isso, porque eu sabia de um jeito que as crianças já sabem quando é verdade, aquelas palavras caiam igual a canela no bolinho, tinha uma coisa diferente...ah isso tinha. Meu esconderijo e lugar destas incríveis descobertas era sempre o mesmo. Tudo começava quando chegava uma visita em casa e na mesma hora as crianças eram mandadas aos empurrões brincar lá fora, até que a visita fosse embora, o que demorava muito sempre, as vezes uma tarde inteira!

Quando todas as crianças eu e minhas irmãs eram empurradas porta a fora para brincar na rua, eu ia junto e logo dava um jeitinho de voltar. Eu ia espiando por aqui e por ali o melhor jeito de entrar sem que me vissem o que era fácil, sempre fui bem pequena e magrinha e isso me ajudava bastante nas minhas investidas silenciosas entre os quatro pés de uma grande cadeira azul de palhas no assento e no encosto, eu passava deslizando, um pouco torta e...aos poucos ficava mais fácil de eu ir me arrastando bem devagarinho, assim de barriga para baixo, que nem as cobras que se torcem todinha e passam em qualquer lugar e somem...o meu lugar era embaixo da mesa da cozinha.

A mesa na minha casa era o centro da casa. Tudo acontecia lá na cozinha e naquela mesa. O café com bolinhos. As conversas começavam com tempo e o frio que se aproximava. Não se falava muito das crianças. Se falava de pessoas adultas. Dos bichos. Das doenças. Da missa. E de vez enquando um silencio longo, acho que faltava assunto...De repente alguém falava sobre uma receita nova e minha mãe pegava um caderno de receitas que só ela escrevia.

Eu escutei que era uma receita para o natal. Minhas orelhas espicharam longe, por que antes do natal, era o meu aniversário, eu aprendi que dois dias antes do natal era o meu dia de nascimento, antes do de Jesus.

Assim era a vida no campo. O céu era sempre azul durante o dia. Tinha nuvens poucas e muitas dependia da estação doa ano. A noite se via as estrelas e a lua...O Campo subia e descia fazendo ondas e bem verdinho até onde os olhos alcançassem. Os olhos de uma criança são pequenos e veem muito longe.

Eu comecei a ver bem longe e foi ali naquela tarde de baixo da mesa mesmo. Decidi que não casaria e não teria filhos. Aquelas mulheres falavam pouco dos filhos. Pensava que seria melhor ser uma professora e ia ensinar todas as pessoas a ler e escrever para contar histórias dos livros. Também ia dar um jeito de que todas as casas tivesse duas mesas, uma era para os adultos e a outra para as crianças poder escrever, desenhar, pintar... e que eu não iria cozinhar e nem receber visitas as tardes inteiras! Era muito cansativo e sem graça a vida e as tardes das mulheres grandes no campo.

O tempo foi passando e meu pai percebeu a minha curiosidade e “precocidade” infantil e me ensinou a ler, era muito frio já era inverno. Aprendi muito rápido as vogais. Depois todo o alfabeto, depois vieram os números. Me ensinou a dançar. Éramos uma dupla de bailarinos na sala de casa. Foi em volta do mesmo fogão a lenha que aprendi a ler as horas. Ali também queimei o meu braço direito e tenho a cicatriz até hoje. Eu não parava quieta e numa dessas macaquices, cai e meu braço ficou preso entre a chapa do fogão e o varão que protege em volta. A tabuada que estudava toda ficou queimada igual o meu braço.

Achava o meu pai a pessoa mais sabida, ele fazia todas contas de cabeça, pois não se tinha maquina calculadora naquela época. Foi também meu pai que me presenteou aos 9 anos com uma bíblia grande bem pesada e uma coleção de dicionário que tenho até hoje. Esses presentes são muito especiais.

Na escola eu tive muitas dificuldades e não foi por não aprender, mas por perguntar muito e querer saber sempre mais. Diziam que eu era precoce! Levava surras todos os dias em casa depois da aula, pois sempre tinha uma ou mais reclamações da professora. Castigo dia sim e no outro dia também. Nunca perdi o interesse de ir para a escola, em estudar e aprender apesar de tudo.

Teve uma vez que encontrei um livro na biblioteca que contava a minha história era um livrinho com um garotinho chamado Zezé e sua árvore: “O meu pé de laranja lima”, fiquei tão encantada que pensei este livro conta a minha história e tem até o meu sobrenome “Lima”, depois o livro virou filme. Eu podia ter sido a melhor amiga, a árvore do protagonista Zezé, nós dois íamos rir e chorar, aprontar juntos.

Eu cresci numa família grande com nove irmãos mais velhos e três mais novos com quem eu brincava, duas meninas e um menino - todos fizemos caminhos diferentes! Nasci agricultora, e desde cedo com 14 anos comecei a trabalhar e fui trabalhando e fui gostando de ganhar meu dinheiro e comprar minhas coisas - especialmente livros. As pessoas me contavam suas dores, seus dias difíceis, seus conflitos, eu escutava...só escutava e esquecia.

Pensava em ser advogada. Queria ser psicóloga. Passei nos dois vestibulares no mesmo verão, estou terapeuta pelo destino e por muitos estudos.

Quando eu fiz 36 anos meu pai partiu, era um dia tão frio quanto aquele que me queimei. Minha mãe partiu alguns anos depois num dia de verão, igual as tardes quentes no campo, sol a pino, e para refrescar as lágrimas escorriam secando pelo calor do sol, tipo as roupas no varal que ela tanto gostava! Uma irmã mais velha também foi embora, acredito que as famílias se encontram do outro lado da eternidade.

Daqui a dois dias é meu aniversário! Passei a gostar desta época. Dá pra acreditar que a Lili nunca teve uma festa de aniversário? Lili é o meu apelido. E foi eu que escolhi segundo a minha mãe, tudo por conta de uma ovelhinha filhotinha, que era o meu bichinho de estimação. Eu chamava ela de Lili e ela respondia, então decidi que seríamos gêmeas - duas Lilis.

Continuo nascendo a cada véspera do natal e sempre no mesmo dia 23 de dezembro, há 55 anos. Pelos astros sou uma legítima capricorniana, eu gosto de subir e ficar sozinha na minha montanha, e sempre olhando mais longe...até onde os olhos alcançam e a imaginação vai...vai...bem longe!

Das decisões e promessas feitas em baixo da mesa, posso afirmar que tive manhãs e tardes bem interessantes e muito criativas deitadas no chão, olhando para o céu e desenhando nas nuvens. Plantei um jardim particular em vasinhos pequenos e um lindo pé de manjericão a minha planta preferida.

Das promessas e decisões não cumpridas - eu me apaixonei e casei por quase 26 anos, fiz até bodas de prata e mais um pouquinho. Também sou mãe de dois filhos que gestei por sete meses cada um deles, e ambos viraram estrelinhas.

Da casa no campo, do interior, do passado e da criança, eu conto aqui no meu conto que encontrei muitos livros, muitas histórias, muitas pessoas que me deram oportunidades grandiosas.


O destino me presenteou com um “porto alegre” e acreditem aqui tem o pôr do sol mais bonito que já vi.


Ainda tenho dificuldades para dormir uma noite inteira. E, eu escuto aquelas vozes e logo sigo à risca o manual invisível da vida e logo na primeira folha está assim: junte as duas mãozinhas e fale baixinho com o santo anjo senhor.

Eu leio poemas todos os dias, não consigo imaginar um dia sem música, sem sol, sem flores, sem livros...estudo todos os dias!


Meus pais continuam aqui em mim e comigo, especialmente minha mãe vive em mim como um mantra – e é sempre naqueles dias, quando me sinto sozinha e um pouco perdida eu escuto: “não tenha medo - as crianças esquecem o que vieram fazer na vida”. Lili tu já cresceu, confia...confia na vida e confia na morte!


Este conto não tem fim...


(Eliane Macedo Lima)

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